sábado, 5 de maio de 2012

Malvinas 30 anos: O amor depois da guerra (Noemi Ciollaro - Página 12)


Nota: não existe guerra que possa ser contada sem considerar-se o lado humano de todos os envolvidos que são muito mais que os combatentes, são suas famílias, os cônjuges e filhos. Nesse artigo originalmente publicado no jornal Página 12, uma mostra contudente da amplitude dos danos que uma guerra consegue fazer já que doem mais as dores que se sentem por dentro.
ESSE TEXTO É PUBLICADO COMO UM TRIBUTO ÀQUELAS QUE VIVERAM A GUERRA ATRAVÉS DE SEUS MARIDOS E DERAM MOSTRAS DE FORÇA, EMPENHO E AMOR POR AQUELES HOMENS. É, DA MINHA PARTE, UM MANIFESTO PACIFISTA ÍMPAR.

NOTA: Tentei interferir o menos possível no texto apenas fazendo adaptações necessárias ao melhor entendimento em português. Em negrito estão intervenções das pessoas outras que não as esposas e alguns termos usados em castelhano foram mantidos , especialmente os militares, com notas para corresponder a termos mais usuais em outras línguas que não o castelhano ou português.




"Eram adolescentes fazendo o serviço militar obrigatório quando foram usados como carne de canhão em uma guerra louca. As fotos de suas namoradas eram companhia nas trincheiras. Elas, as mesmas que se despediram com medo e orgulho, foram as que os receberam quando a derrota estava escrita em seus corpos mais do que qualquer outra cicatriz. Durante décadas apoiaram esses homens que sabiam serem heróis quando ninguém os via desse modo, mas com quem podiam falar sobre as coisas mais cotidianas. Com o tempo, dizem os especialistas, algumas chegaram a ter os mesmos sintomas de seus companheiros ou se debatiam entre a submissão e o vínculo maternal como se fossem faces da mesma moeda. Este ano suas vozes começaram a ser escutadas de outra maneira dentro do Centro de Saúde para Veteranos das Malvinas, que também atendem familiares dos que combateram no extremo sul de nosso país. Reunidas ali, quatro mulheres de ex-combatentes testemunharam à Página 12 o que elas e seus companheiros viveram depois da guerra quando o desampara social e do Estado eram a única perspectiva.

ERA COMO SER SUA MÃE E SUA MULHER

Gabriela Suárez (52) esposa de Sergio González: "O conheci no ano de seu regresso das Malvinas, temos 27 anos de casados. O encontrei em seu pior momento, no pós-guerra, emocionalmente em carne viva mas orgulhoso do que havia feito, nunca se queixou de haver tido de defender a pátria. O que tinha era uma dor enorme pela perda de tantos amigos, "irmãos da vida" como chamam a seus companheiros. Achava estranho que não tinha raiva, nem rancor mas o que tinha era dor:  "sinto que vim com as mãos vazias e que tudo foi em vão", dizia. Foram anos muito difíceis por que não sabia de nada e de repente tive de ser psicóloga, esposa, tudo junto. Ele teve uma má experiências com psicólogos, o levávamos obrigado mas abandonou. A terapia era feita em casa na madrugada que chorava e falava, por anos e anos: E eu?..."quando o conheci eu trabalhava, nos casamos e continuei a trabalhar até que nasceu nosso primeiro filho quando abandonei o trabalho e me dediquei a eles e à ele. Temos três filhos de 25, 20 e 18 anos. Fiz um pouco de terapia individual e familiar com a mãe dele, as irmãs e ele para estimulá-lo à participar mas não quis saber de nada, preferia desafogar-se comigo a quem falava quando queria, se não quisesse não falava no assunto, ele dirigia os tempos. Para mim não era simples: as coisas que me contava eram desoladoas... e eu apenas tinha 23 anos. Mesmo hoje é terrível escutar as coisas que passaram lá, assim que tão jovem... fora como estivesse envolvida na guerra, havia momentos em que dizia a ele que não sabia se fazia bem à ele, não tinha os elementos para ajudá-lo, pensava que minhas repostas poderiam ser contraproducentes mas ele dizia que comigo conseguia. Minha esperança agora é com esse Centro de Saúde criado para eles e para as famílias consiga tratamento mas não quer voltar a reviver...  Eu o frequentaria para que frequente ele. Embora também... eu acredito que nos faz falta porque é um peso muito grande que temos, necessitam muita ajuda, não sei se aconteceu a todas o mesmo mas era como ser mãe apesar de ser suas esposas. Havia momentos nos quais me sentia sua mãe, depois disso equilibrou-se ... sim, acredito que faria bem a todos , inclusive aos filhos

"SE NÃO FALAR, NOS SEPARAMOS"

Mônica Avila (48), esposa de Mario Giraldez: "Comecei a namorar com Mário aos 15 anos. Não pude despedir-me dele quando foi à Malvinas, me avisou por telefone que o levariam e o recebi quando voltou. O olhar que tinha quando foi nunca mais existiu, nunca mais voltou a ser o mesmo depois da guerra. Cheguei em sua casa emocionada porque estava vivo mas o vi inexperessivo, me olhava fixamente com esses olhos, com esse rosto, sujo, espantado. Eu tinha 18 anos, não sabia o que passava e  tampouco sua família. Ficou três meses sem falar nada e tive de tirar forças de onde não tinha para apoiar a pessoa que amava... E fomos crescendo os dois com tudo o que ele teve de viver, com essa carga que trazia de lá. Saíamos a caminhar e quando as pessoas que o conheciam desde a infância o cumprimentava, abraçavam-no chorando, ele os afastava, olhava e dizia "estou bem", as únicas palavras que pronunciou nesses três meses até que em um dado momento me enraiveci , o encarei e disse : "se você não falar, nos separamos, não me verá mais , acabou". Depois de três dias voltou e começou a ter o mínimo de diálogo comigo. Assim seguimos lutando, ano depois de ano, para que fosse reinserido na sociedade, que fosse trabalhar, ele que tinha uma mãe viúva. Nos casamos em 84  e sempre, todos esses anos, foram de luta, sozinhos. Temos três filhos, um de 26, uma de 22 e outra de 20.
Ah, sim, tenho o costume de chorar... (diz desculpando-se).Não é o que tudo isso me custou, é o grande amor que tenho por ele. Quando fomos ao Regimento 6 no ano passado, por amor deixei meu trabalho, o fiz para conhecer esse lugar que ele ama, no Pampa. Ele me dizia que era ali que era feliz e eu dizia "o que acontece, é um lugar mágico?" e ele realmente era feliz ali.Ver de longe ele interagindo com quem esteve com ele nas ilhas lutando na Companhia B, no monte "Duas Irmãs"... Ali são outras pessoas, meninos de 18 anos, voltam a viver, a contar isso indiferente a todos. Emociona-me e me faz chorar saber que depois do que nós lutamos , colhemos os frutos. Que eles agora pode falar e dialogar com pessoas que não são veteranos e pertencer de novo à essa sociedade com quem não queriam saber de nada porque se sentiam excluídos. Sim, acredito que as mulheres necessitam de ajuda porque se deixou em nossas mãos uma carga enorme que era a saúde de nossos esposos. Sim, no museu do Regimento 6 falta um espaço para as esposas porque eles estão aqui hoje por conta de nós. Olho para trás e fiz bem as coisas, criei meus filhos que me acompanham a todo lugar, lhes dei um pai maravilhoso e hoje o vi no jardim do Centro e pensei que fiz as coisas muito bem..."

A psicóloga Marcela Aldazábal explica que "geralmente é a mulher que vem à consulta porque o veterano é como um acúmulo de sintomas desde fora, que não dorme, que é violento, que isola-se ou são aqueles que vêm dizendo "venho porque minha esposa me manda porque já não me aguenta mais". Depois vêm elas porque quando eles melhoram também não aguentam, há que desenvolver um trabalho de reacomodação porque o vínculo está doente. A crise da mulher aparece quando o marido começa a melhorar e ela pergunta-se o que passa com ela e com sua vida.
Por sua vez a psiquiatra Viviana Torresi afirma: há pouquíssima simetria de vínculo, não há casal igual. Há um excesso de tolerância justificando e amparando-lhes nessa posição de vítimas. As mulheres tendem a criar cumplicidades com os terapeutas: "te chamei mas não diga que fiz isso". É como uma mãe na terapia com um menino, ou seja, tem de restruturar todos os vínculos familiares.


NÃO FEZ TERAPIA

Adriana Villanueva, Carolina Beux, Graciela Suárez, Mónica Avila.
Imagen: Constanza Niscovolos
Carolina Beux (42), esposa de Patricio Louzao: "Quando Patricio foi a Malvinas eu começava a escola secundária, o conheci em 84 e não sabia que havia ido à guerra, noivamos quando ele tinha 24 e eu 17. Aí soube da guerra, mas jamais falava. Em 95, quando nos casamos começou a falar alguma coisa. Ele faz uma couraça de homem que superou, que tem tudo claro, que foi a guerra e voltou, nada o perturba e isso durou muito. Durante 10 anos não ia aos encontros de 2 de abril e eu sempre respeitei seus tempos porque se fazia perguntas ele se fechava mais. Duro, sim, mas quando chegava a data não o abraçava e não podia dizer "te amo". Com o passar dos anos começou a falar, o convidaram à uma rádio com outro companheiro e a sua mensagem era "gostaria de voltar às ilhas" e eu pensava que ele tinha enlouquecido mas estava orgulhoso disse dez anos depois. Nossa escala de valores era diferente: quando morreu seu pai disse-lhe: "Cara, morreu seu pai! Reaja!" mas ele me respondeu que seu pai havia morrido e ele tinha de seguir adiante. Pensei: esse rapaz não se permite nada, não quer ver, foge. Passou  o tempo e adotamos um filho,temos dois pequenos Joaquín de 10 anos e Malena de 3 anos e o trâmite foi longo. No início tratou de conformar-se ante a situação complexa e me dizia "bem, é isso que nos cabe... " mas chegou Joaquín e o desestruturou, fez com que rompesse todas as couraças e à partir daí permitiu-se chorar em um ato do colégio porque viu ao menino fantasiado de amendoeira... Ao longo de dez anos se ajeitando até que no aniversário de 25 anos das Malvinas disse: "sim, vou ao ato.." Ali encontrou-se com seus companheiros de serviço militar obrigatório, eles fizeram um ano com boa instrução, conheciam a disciplina dura e como sobreviver, disse que assim foi mais suportável. Na guerra era "furrier" , secretário do chefe da Companhia, Abella, que lembrava como alguém de caráter muito complicado como militar mas que não permitiria que morressem. Patrício disse que os que estavam nos poços de raposa (poços cavados na terra)  (foxholes na terminologia militar americada - Nota do Tradutor) ficaram ruins da cabeça (quemados em la cabeza no original). O objetivo dele era voltar, está agradecido porque não matou ninguém , queria cuidar de seus companheiros e voltar . Disse que o serviço militar era obrigatório  e que ele não é herói. No ano passado voltou às ilhas, isso foi muito restaurador, foi com companheiros e com seu irmão que pode entender melhor as coisas de Patrício. Deu um depoimento em Tigre antes de viajar e outro depois de regressar e se emocionou-se muito com perguntas respeitosas sobre o que aconteceu com os corpos dos companheiros que morriam. Explicou que se arma de uma couraça para não ter de demonstrar o que passa. Hoje está dedicado em conseguir boas coisas para seus companheiros e o faz bem e eu como esposa trato de acompanhar-lo. Eu sim, fiz terapia e , bem, pode ser que venha a tomar uns mates com La Madrid mas terapia? É muito bom que tenha aberto esse Centro. Nossos meninos são meninos e à menina ele canta a marcha das Malvinas quando a faz dormir, mas não anda de verde nem com a jaqueta militar. Ele não quer que se perdam as memórias das Malvinas mas não faz militarizado e  nem enloquecendo os meninos com o mesmo, todos os dias".

E também no caso das veteranas que estão ao lado de seus maridos, vão a todas as reuniões e atos de veteranos, levam a agenda. Muitas sabem mais da história do que eles mesmos: datas, a posição que tinha o marido, em que poço de raposa esteve, em que horas combateu, o nome de todos os que estiveram no mesmo regimento, como estivesse estado ali, "soldadas" - diz Marcela Aldazába.

"EU TAMBÉM SOU UM SER HUMANO"

Adriana Villanueva (50), esposa de Marcelo Vallejo: "Conheci ao meu marido aos nove anos, eramos vizinhos. Antes da guerra já eramos namorados. Não queria que fosse mas ele foi com orgulho, apresentou-se sozinho. A volta foi dura, seguimos namorados e nos casamos. Ele não queria falar de Malvinas, o fazia muito superficialmente... eu perguntava algo mas também fazia com respeito, não? Sim, sempre tentei que ele fosse à um psicólogo mas não, dois anos depois conseguiu trabalho mas seguia na luta, saía da fábrica e se encontrava com outros veteranos, levavam revistas, empapelavam as ruas, malvinizavam. Todo o tempo malvinizava. E eu... muito tempo sozinha. Nós não podíamos ter filhos mas adotamos. Digo que existem filhos que seguem mais a causa e outros que sofre mais, que não querem, meu filho Facundo, de 19, sofreu muito... Meu marido bebia, ia ao Centro... e depois, bebia e se perdia... e ano depois de ano vimos que era pior. Mantinha seu trabalho mas era uma batalha para mim sustentar a casa com ele ausente, ausente. Ele seguia nas Malvinas, como se houvesse ficado nas ilhas. Facundo  sofreu muito e eu não sabia mais o que fazer... Eu às vezes dizia a ele que não podia andar assim, nesse estado, que podia chocar mas ele não entrava. Foram muitos anos, desde 1999, nesse ano no dois de abril veio muito mal, e com minha cunhada tentamos ajudar-lhe, estava matando-se aos poucos. Aí começou outra luta, ir a reuniões de dependentes, brigas com ele, tirar-lhe dos Centros de Veteranos.. Sim, foi terrível , perdi do tempo lindo de meu filho, nós mulheres estivemos muito, muito sozinhas. Temos dois filhos mas o segundo adotamos desde os 5 anos, agora tem 15. E sim,  pensa que dedicou muito empo de sua vida  a isto e perdeu coisas lindas. Não é que me arrependa mas o que quis fazer e a satisfação veio a pouco ao ver que esse cerco que fizemos deu resultados, ele foi saindo, recuperando-se e eu não pude compartilhar viagens, reuniões ou saídas com outras pessoas das Malvinas, ele me afastava, queria estar só com os veteranos mas começou a ver que poderia travar sua luta de outra maneira, de forma mais sadia. Para mim o certo é que uma parte dele ficou nas Malvinas, está lá. Tudo  o que faz é para as Malvinas e para os veteranos mas bem, isso o ajudou e nosso filho mais jovem o acompanha muito. Eu? Eu como todas....  Ele viajou para as ilhas depois de 27 anos para correr uma maratona e isso lhe fez bem. Aí vio que tudo o que se passou não foi inútil, aqui ninguém reconheceu nada, agora à pouco , e lhe fez muito bem, se sentia frustrado com as pessoas mas já não dizem aos veteranos "este é um louquinho..." . Eles necessitam e desejam reocnhecimento e agora estão tendo e, bem, segue igual.... o tema Malvinas é continuo, a vezes à noite... sim, e depois de muito tempo pode contar que morreu um amigo ao lado, o trauma de que na retirada não lhes deixassem levar seus mortos, a culpa... Ele estava indo a uma psicóloga que soube lidar com ele durante a internação e ela me dizia o que tinha de fazer com ele... e, bem, isso me ajudou um pouco porque estávamos sós, muito sós e tentando entender... como irmãs, como mães. Sozinhas por toda vida... Sempre me disse que se eu não estivesse, ele não existiria. Nós choramos por eles e por nós mesmas... também... está é sua própria vida. Também sou um ser humano". 

A psicóloga Adazábal afirma que "há uma dissociação na guerra entre o que se sente e onde se atua, essa mesma dissociação se produz nos afetos no pós guerra, então muito deles estão em casa e não estão, e que passa lhes é alheio e depois passam a estar e a mulher se incomoda, tem de ceder o comando da casa ou compartilhá-lo. O veterano hoje está bem economicamente falando e muitos ficam em casa". A dor e a angústia afloram reiteradamente durante as entrevistas e também as dificuldades para falar sobre si mesmas, sobre o adiado e o desejado, sobre frustrações e sonhos. Não obstante, de dizem felizes de que seus maridos e elas mesmas comecem a ser escutadas e "registradas".

"Quando mais nos distanciamos da ditadura, mais autorizados  nos sentimos  a recordar e falar sobre o que recordamos, a contar", concluiu Eugênio Romero.

(Tradução : J. B. Libório - a matéria original no Página 12 pode ser acessada aqui)

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